terça-feira, 26 de abril de 2016

Um século de um suicídio: Mário Sá Carneiro.







Há 100 anos se suicidava num hotel em Paris o heterônimo de Fernando Pessoa mais independente, que ao fazer percurso próprio, isolado (Os outros também faziam seu próprio percurso, mas mantinham a dependência.) pois, deferentemente dos demais, não precisava da cabeça do Fernando para pensar, chamava-se Mario Sá Carneiro, e não suportando seu conflito existencial, pôs fim a ele. Pessoa o curtiu lentamente a golos de vinho, suicidando-se demoradamente.

Era brilhante por voz própria, assim como os outros heterônimos, porém aqueles sabemos ser Pessoa, e este sabemos não ser, e isso faz toda a diferença, mas não lhe retira o estatuto.

Não gosto de suicidas, amo Fernando Pessoa, que fingiu não ser. Não posso amar menos Mario Sá Carneiro que assumiu ser rápida e prontamente... (Gênios não se encontram pelas esquinas.)

Pronto: ficam encerradas as exceções que abri nesse meu não gostar para a aceitação desses dois, que talvez sejam um, todos os demais estão e estarão apartados para todo o sempre. Sempre lembrando que nunca se deve dizer dessa água não beberei.


Deixo 2 poemas de Mario Sá Carneiro, um o prenúncio de suicidar-se, que é muito evidente além de toda sua obra, seu enfado da vida, de rico bem nascido que esvaia-se no nada de seu vazio existencial, o outro no bilhete do suicídio que envia a seu mentor, à seu umbigo, âncora de seu desvario, reproduzo a parte essencial do bilhete/carta que evidencia essa dependência psicológica, é logo o começo do bilhete, a seguir o poema sugestivamente intitulado.

Vontade de Dormir

Fios d'ouro puxam por mim
A soerguer-me na poeira -
Cada um para o seu fim,
Cada um para o seu norte...

. . . . . . . . . . . . . . .

- Ai que saudade da morte...

. . . . . . . . . . . . . . .

Quero dormir... ancorar...

. . . . . . . . . . . . . . .

Arranquem-me esta grandeza!
- Pra que me sonha a beleza,
Se a não posso transmigrar?...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão' 



Paris - 31 Março 1916
Meu Querido Amigo.
A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas "cartas de despedida"... Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui... Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas: mas não tenho dinheiro. [...]

Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!
                                     Mário de Sá Carneiro.



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